Um blog em 1.ª pessoa, por Igor Gonçalves
Foi minha professora por três anos seguidos. A segunda professora de minha vida, a que viera para preencher meus dias com toda a sua poesia. Tinha uma firmeza na voz capaz de nos deixar em suspenso durante quatro horas. Ainda moram em mim suas palavras recitando poemas, sobretudo, Cecília Meireles.
Tia Ozeni parecia que morava na escola. Seu armário abrigava os mais variados objetos. Mimiógrafo, pente de cabelo, vassoura, caneca, espanador, saco de balas. E livros, muitos livros. Dizia que ler era a coisa mais importante na vida. Que poderíamos perder tudo, menos as leituras que estivessem em nosso coração.
─ A poesia escreve no coração daquele que lê. É uma cicatriz que vale a pena carregar ─ dizia ela, enquanto distribuía suas famosas fichas com poesias para a turma.
Era necessário ler em silêncio, para que o poema perdesse o medo e pudesse ficar conosco. Para a professora, a poesia era ciumenta e não gostava de disputar espaço com outras palavras.
─ Só em silêncio conseguimos sentir a poesia. Não é só ler. É sentir!
E só depois de familiarizados com as palavras, que podíamos ler em voz alta. Toda a turma, cada criança o seu poema. E a sala toda virava uma sinfonia de vozes e sons, de palavras voando por todos os lados.
─ Entendem? Só depois de conhecermos o poema podemos gritá-lo para o mundo. Se não lemos com verdade, corremos o risco de a poesia sair de nossa boca e nunca mais voltar.
Como eu amava Tia Ozeni. Tinha adoração pelas suas palavras, mesmo que muitas vezes não entendesse por completo tudo o que ela queria dizer.
Passara a ser minha professora na 1ª série. Sabia tudo sobre seus alunos. O nome dos pais, dos irmãos, onde moravam. Da janela do primeiro andar da escola, Tia Ozeni apontava um pequeno prédio azul com lonas enormes NAS. Era lá onde ela morava.
─ Eu venho andando. É o tempo de decorar um poema!
A professora tentava de todas as formas nos transmitir seu amor pelas palavras. Ensinava-nos a decorar poemas. Sempre nos lembrava que decorar vinha da palavra “coração” e por isso os poemas não eram apenas para serem repetidos. Eram para viverem no peito, pulsando junto com ele.
Foi Tia Ozeni que me apresentara meu primeiro amor. Era Carolina, “com seu colar de coral”. Como eu desejava conhecer essa menina que corria “por entre as colunas da colina”. Lembro da alegria quando consegui decorar o poema.
Todas as sextas apresentávamos um poema para turma. Escolhíamos um poema em uma sexta e tínhamos que falá-lo para a turma na sexta seguinte. Tia Ozeni dizia que falar poesia tinha um nome: declamar. Mas para ela, o mais importante que conhecer essa palavra, era cumprir o que ela prometia: falar sem medo na frente dos outros.
Não tinha problema se não conseguíssemos decorar todo o texto. Mas tínhamos que falar algo do poema. Nem que fosse uma única palavra. E sempre de pé, para os pulmões abrirem e nossa voz sair melhor.
─ A poesia nos tira o medo de dizer o que pensamos. Quando falamos a nossa verdade em voz alta, as outras pessoas acreditam e não têm coragem de nos interromper.
E assim fui me transformando nO Menino Azul, com sede de “dizer/ o nome dos rios,/ das montanhas, das flores”. A cada poema, uma parte nova da vida se abria para mim e eu perdia o medo dos amanhãs. Os amanhãs sempre foram um peso para mim. Mas com as palavras aprendi a me preparar para o dia seguinte.
Queria conhecer essa moça Cecília, que escrevia coisas tão bonitas. Sua poesia me fortalecia de tal forma que o grande rio da existência já não me parecia tão assustador. Era como se eu fosse o seu Rômulo, abrindo o rio com meu remo.
Foi lendo uma das fichas poéticas de Tia Ozeni que entrou em mim uma saudade enorme de uma avó que nunca conheci. Uma saudade tão grande que às vezes me fere. Como era possível uma avó viver só, como no poema? Eu desejava ter uma avó para bater pão de ló e “andar um vento-t-o-t-ó”. Para conhecer o galo liró e jogar dominó com a vovó.
Queria que Tia Ozeni fosse minha avó. Várias vezes ensaiei o pedido. Mas sempre que me apresentava diante da dela, minha voz embargava e a única coisa que podia fazer era abraçá-la. Um abraço de neto. O neto que nunca pude ser.
Tinha dificuldade em escrever de mãozinha dada. Tia Ozeni dizia que um dia eu aprenderia. O importante era saber escrever, não importava como. Passei a treinar escrevendo poesia.
Todos os dias escrevia “A Flor Amarela” em um pedaço de papel e o ofertava para a professora com uma Alamanda Amarela. E todos os dias ela recebia o presente como se fosse a primeira vez. Eu já até sabia o que deveria ser feito. Pegava uma caneca em seu armário e a enchia de água no bebedouro. Depois colocava a flor dentro e a deixava na janela.
Aprendi muito com Tia Ozeni. Em tudo ela conseguia colocar poesia. Ciências, Geografia, História. E até Matemática.
─ A poesia guarda o segredo do mundo. Ela está em tudo.
E foi com Tia Ozeni que descobri que podia ir à lua andando de patinete, que poderia ser afagado pelo céu ou que poderia ter uma sacada em minha casa de chão de barro.
Essas descobertas marcaram minha vida de leitor, assim como Tia Ozeni marcou minha vida de aluno. Sempre procurei nos mestres seguintes algum resquício dessa professora.
Quando passo em frente ao prédio azul de grandes lonas nas janelas faço questão de apontar e dizer que ali morava minha professora. Talvez ela seja a primeira referência que tenho sobre o QUE deveria ser um mediador de leitura. Não sei se ela conhecia esse termo. Sei que procurava fazer o melhor, dar o melhor.
Se pudesse perguntar à Tia Ozeni o que era um mediador de leitura, talvez ela respondesse:
─ Deve ser aquele que entrelaça as mãos da literatura com a do leitor para que eles possam caminhar sozinhos.
Foi justamente isso que Tia Ozeni fez comigo. Fez com que a poesia apertasse minha mão de maneira tão forte que passamos a ser companheiros de viagem. Com Tia Ozeni aprendi a não temer o desconhecido, pois há sempre o brilho da lua depois da chuva.