Por Aline Reis . 28 de dezembro de 2021
Os contos maravilhosos estão presentes em nossas vidas há gerações e essas pequenas narrativas vêm sendo fielmente contadas mesmo que, em algumas vezes, estejam modificadas por diversas razões.
Muitos são os contos maravilhosos contados desde a Idade Média, que chegaram até a Idade Moderna, graças a alguns compiladores, como Charles Perrault (séc. XVII), os irmãos Grimm (séc. XVIII) e outros que, com zelo, reuniram tais histórias da memória do povo de cada uma de suas épocas.
Essa é uma história que mostra a união de dois irmãos, o que é difícil de se encontrar nos contos de fadas. Além disso, trata da vitória dessas crianças sobre adultos cujos comportamentos são hostis e exploradores. Esses dois irmãos unem suas forças a fim de derrotarem os “monstros” de casa e da floresta.
Ilustração: Marie Wunsch (1862-1898)
Fome, abandono, medo de ser devorado são situações ou estados de espírito que surgem neste conto, além de “O Pequeno Polegar”, por exemplo. Os “bichos-papões” aqui se diferem, mas as angústias são as mesmas. Salve-se quem puder e, de preferência, unindo forças com os irmãos, também vítimas.
Mas o que é Intertextualidade?
Bem, para Bakhtin o texto intertextual substitui a segmentação estática dos textos por um modelo segundo o qual a estrutura literária se elabora a partir de uma relação com outra. Segundo Kristeva, “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. Em suma, entende-se por intertextualidade a relação de cumplicidade, explícita ou não, entre duas narrativas, onde uma se apoia na essência da outra, trazendo ao leitor uma variedade mais profunda de informações.
Assim sendo, vamos falar da intertextualidade presente no livro “O menino que não se chamava João e a menina que não se chamava Maria”, de autoria de Georgina da Costa Martins (1999). Esse texto intertextualiza o conto João e Maria, compilado pelos irmãos Grimm no século XVIII.
Segundo Georgina Martins, o livro é “sobre a trajetória da infância pobre, constantemente representada nos contos maravilhosos”, investigando, ainda, “a relação entre o contexto social e econômico da infância nas Idades Média e Moderna e a representação desse contexto no imaginário popular”. Sua escrita ainda segue “por uma análise de contorno sociológico a fim de estabelecer um possível diálogo entre o caminho que percorreu a infância abandonada da Europa Medieval e Moderna e o que percorre a do nosso país desde o início da colonização”.
Sem mais delongas, vamos à análise do diálogo que há entre as duas obras: João e Maria e O menino que não se chamava João e a menina que não se chamava Maria. Se você não conhece o livro escrito por Georgina Martins, sugiro sua leitura.
Percebemos a presença da intertextualidade se conhecemos a obra com a qual o segundo texto dialoga. Neste caso, notamos os hiatos e os pontos de inflexão importantes à construção da narrativa moderna, de acordo com as intenções da autora, segundo sua explanação.
No conto brasileiro, as crianças mantêm laços fraternos; não são duas e, sim, três. Não foram nomeadas, com exceção da mais novinha, ainda bebê, chamada de Nininha. São pobres, passando por sérios problemas financeiros e domésticos, assim como João e Maria, dos Grimm. Os três saem de casa e o irmão tenta convencer a irmã de que precisam encontrar a casa feita de doces, para comerem tudo o que tinham direito, levando Nininha.
O menino que não se chamava João queria encontrar a tal casa (aquela, feita de doces!), mas a menina que não se chamava Maria não acreditava muito que ela existisse. Apesar disso, resolveu acompanhar seu irmão.
A irmã é, muitas vezes, chamada de Maria, assim como o irmão é chamado de João, para manter a referência a outra história. Os próprios personagens retrucam o nome que eles mesmos se dão:
– Para com isso, João, você sabe muito bem que eu não me chamo Maria […]
– Por isso não, eu também não me chamo João!
Em ambos os contos, tanto o mais antigo como o da escritora brasileira, os pedaços de pão são mencionados. A primeira intenção para este alimento, no conto medieval, é alimentar as crianças enquanto ficam à mercê de um faminto carnívoro da floresta para devorá-las. No conto brasileiro, as crianças veem a mesma função, porém, assim como as outras duas, não estão cientes dos perigos que as aguardavam.
Já a segunda intenção de uso do pão é, no conto medieval, marcar o caminho de volta para casa, o que é frustrado por conta dos pássaros da floresta, que se alimentam dessas migalhas.
Quando a lua subiu eles começaram a andar, mas não encontraram as migalhas, os milhares de pássaros na floresta haviam ciscado e comido tudo – João e Maria.
É importante a gente se lembrar de uma situação: em João e Maria as crianças foram deixadas na floresta pela madrasta e no conto de Georgina Martins, elas são expulsas de casa por um personagem chamado por elas de monstro.
Esse monstro é um homem que vive com a mãe das crianças brasileiras que, por sua vez, demonstra ser submissa a essa figura, parecendo haver dependência financeira, moral e, até mesmo, psicológica. Esse fato torna mais frouxo o elo existente entre ela e seus filhos, explicitando um padrão comportamental observado em famílias que apresentam deficiências em sua estruturação.
Observamos que a bruxa e o monstro, cada um em sua forma, são as figuras que aterrorizam o imaginário das crianças. A figura da bruxa aparece de olhos vermelhos e com baixa acuidade visual, mas tem o olfato apurado como o dos bichos e percebe a aproximação dos seres humanos. Com essas características, os compiladores Grimm tiveram a intenção de aproximar a personagem bruxa de seres afastados dos traços de humanidade; sua essência é similar a e um ogro.
Para concluirmos, vamos deixar claro que as crianças da história da escritora contemporânea seguem obstinadas à procura da casa feita de doces. Em seus imaginários, elas têm a certeza de que encontrarão a referida casa que, em suas mentes, é a expressão da felicidade em seu sentido mais amplo. Já as crianças do conto medieval não sabiam, ao menos, da existência de uma casa feita de doces, muito menos quem era sua proprietária.
E já que estamos a falar de intertextualidade, a autora contemporânea finaliza da seguinte forma a sua história:
Dizem por aí que eles foram morar no livro e viveram felizes para sempre. Isso eu não sei não, mas ouvi dizer que, agora, a história começa igual àquela outra: Era uma vez um menino que se chamava João e uma menina que se chamava Maria.
Percebemos, claramente, um trabalho de intertextualidade produzido pela autora do conto brasileiro. Assim, para Barthes apud Sandra Nitrini:
Todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele; em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis; os textos da cultura anterior e os da cultura circundante, todo texto é um tecido novo de citações acabadas. […] A intertextualidade, condição de qualquer texto, qualquer que ele seja, não se reduz evidentemente a um problema de fontes ou de influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem é raramente localizável, de citações inconscientes ou automáticas feitas sem aspas
Referências
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Contos dos irmãos Grimm. São Paulo: Rocco, 1999.
MARTINS, Georgina da Costa. O menino que não se chamava João e a menina que não se chamava Maria. São Paulo: DCL, 1999. 3.ed. Ilustrações Victor Tavares.
NITRINI, Sandra. Literatura comparada. História, teoria e crítica. 3.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.